Salazar-de-hoje

Os três Salazares, a Ordem de Ferro e a Liberdade Inacabada

Quando, recentemente, André Ventura falou na necessidade de “três Salazares” para Portugal, tal declaração funcionou como um choque elétrico que reabriu uma ferida histórica nunca totalmente cicatrizada. Para avaliar o Estado Novo e a figura de António de Oliveira Salazar, é imperativo evitar a tentação do branco e preto e reconhecer que se trata de um período de contrastes profundos e dolorosos.

Olhando para ontem: O preço da “Ordem”

Salazar e o seu Estado Novo deixaram um legado indelével de sombras. A acusação não é mera opinião, é um facto histórico: o regime manteve uma política deliberada de analfabetismo, pois um povo ignorante é mais fácil de governar. Condenou o país a um atraso económico e social crónico, isolando-o do progresso europeu. Sustentou uma guerra colonial insustentável, ceifando a vida de milhares de jovens portugueses e adiando a inevitável independência de outros países. E, de forma mais visceral e condenável, institucionalizou a repressão.

A PIDE, a censura, as prisões políticas, a tortura e o medo foram os pilares que sustentavam a suposta “paz”. Ter uma opinião contrária era um crime. Sonhar com a liberdade era uma heresia punível. Por este prisma, Salazar não fez bem a Portugal; atrofiou-o, mutilou-o e deixou marcas de trauma coletivo que perduram.

Paradoxalmente, é inegável que, pelo menos no imaginário de alguns, este período é associado a um conjunto de valores que parecem esmorecidos hoje. Havia uma ordem pública férrea, uma autoridade do Estado (seja o professor, o polícia ou o chefe de família) que era raramente contestada. A família era a célula-base da sociedade, e os mais velhos detinham um lugar de respeito inquestionável, mais velhos que hoje são em muitos casos abandonados à sua sorte, desprezados e esquecidos até por quem os deveria proteger em primeira instância, os seus familiares diretos, porque os vêem como um fardo. Era uma sociedade de estrutura hierárquica e aparentemente estável, onde os valores tradicionais eram a bússola moral.

Hoje: A Liberdade e os seus Demónios Institucionais

Quando se olha para o Portugal de hoje, é fácil entender a nostalgia. A nossa liberdade, conquistada a 25 de Abril de 1974, trouxe consigo luz, mas também projetou novas sombras, mais insidiosas. Para a violência urbana, os gangs e o tráfico de droga, somam-se agora falhas gritantes nos pilares do Estado Social que deveria proteger-nos.

Vivemos com um Sistema de Saúde heróico nos seus profissionais, mas falido na sua estrutura, onde as intermináveis listas de espera e o sofrimento dos doentes são uma chaga moral. Sofremos com um Sistema de Segurança Social que, num nobre intento de rede de apoio, é por vezes distorcido, permitindo que uma minoria viva à sombra de subsídios, desincentivando o trabalho e penalizando os que contribuem honestamente. E, talvez o mais corrosivo para a confiança cívica, temos um Sistema Judicial disfuncional, onde os processos se arrastam ao longo de anos num limbo em que “ninguém é culpado de nada”, e onde criminosos de crimes bárbaros são libertados por tecnicismos como o excesso de prisão preventiva, escarnecendo da justiça e deixando as vítimas num eterno desamparo.

A esta tríade de falhas junta-se o cancro da corrupção. Uma corrupção sistémica onde demasiados poderosos, públicos e privados, parecem governar-se a si próprios em vez de governarem para o bem comum. Atuam com uma sensação de impunidade, protegidos por teias de influência e por uma justiça lenta que, na prática, falha em responsabilizá-los. Esta corrupção não é apenas um desvio de fundos; é o roubo do futuro da Nação.

E quem paga o preço mais alto são os jovens. O País revela uma incapacidade crónica em criar saídas profissionais dignas, forçando uma geração qualificada ao exílio económico. E no centro deste sistema disfuncional está uma classe política crescentemente desconectada da realidade. Na sua grande maioria, formada nas estufas das juventudes partidárias, sem experiência profissional substantiva fora da política, criou um mundo à parte. É este mundo que legisla sobre o mundo real: o mundo de quem trabalha e não consegue ganhar para uma habitação condigna, para assegurar uma velhice tranquila, ou simplesmente para ter uma vida com dignidade básica. A sensação é a de que quem decide não compreende, nem vive, as consequências das suas próprias decisões.

Para além da demagogia, a construção do Bem Comum

Cair na armadilha de opor o passado ditatorial ao presente caótico é um erro. A solução não está no regresso a um ditador, e muito menos a três ditadores, mas na coragem de exigir uma democracia que funcione. A demagogia política, que se limita a apontar problemas sem apresentar soluções sérias, é tão culpada pela estagnação quanto a própria inércia.

Com o contributo de todos, nomeadamente daqueles que defendem de facto o País que somos sem negar o País que fomos, porque foi esse País que nos transmitiu valores e princípios, precisamos que ter em que conta que um país só cresce verdadeiramente quando assenta em valores sólidos, e estes valores não podem brotar do solo estéril do egoísmo individual, mas sim da semente do Bem Comum.

Isto traduz-se em ações concretas e não em slogans vazios:

  • Um SNS que funcione é um valor, é a materialização do princípio de que a saúde de um concidadão é responsabilidade de todos.
  • Uma Segurança Social justa é um valor, que deve amparar os que verdadeiramente precisam, mas que deve dignificar o trabalho e a autonomia, não a dependência nem o encosto.
  • Uma Justiça célere e eficaz é um valor fundamental, o alicerce sem o qual nenhuma sociedade pode sentir-se em paz ou confiar nas suas instituições.
  • O combate sem tréguas à corrupção é um imperativo de saneamento moral nacional.
  • A criação de oportunidades para os jovens é um investimento no futuro, sem o qual o país definha.
  • E, fundamentalmente, é necessário reconectar a classe política com a vida real, exigindo experiência de vida e integridade a quem aspira a governar.

A ordem imposta pelo medo é falsa. Mas a liberdade sem justiça, sem equidade e sem responsabilidade é um convite ao caos. Reclamar ações em cima do trabalho dos outros, e travando até todos os que não concordam com algumas lutas, não tornam essas lutas mais dignas, antes pelo contrário as esvaziam. O desafio que se coloca a Portugal não é escolher entre a ordem de ferro de Salazar e a liberdade disfuncional de hoje, mas é antes, coletivamente, amadurecer e construir uma “República de Responsabilidade”, onde a liberdade de cada um é harmonizada com o bem de todos. Esse é o projeto nacional urgente que exige mais do que votos; exige carácter, integridade e uma vontade férrea de colocar o interesse coletivo no centro da ação política e cívica. Só assim honraremos o passado, sem o romantizar, e construiremos um futuro verdadeiramente livre e digno.

Jorge Reis

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